Recolhimento abaixo do mínimo legal garante a qualidade de segurado? O caso é polêmico e vai ser decidido pelo STF.
- Raphael Luque
- 5 de abr.
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No universo previdenciário brasileiro, onde tantas vezes a burocracia e a rigidez normativa caminham de mãos dadas, a recente decisão da Turma Nacional de Uniformização (TNU) no Tema 349 surge como um sopro de coerência jurídica e sensibilidade social. Ela toca um ponto crítico, comum nos bastidores de advogados previdenciaristas e invisível para grande parte da população: o tratamento dado às contribuições feitas abaixo do valor mínimo. O que antes era visto como um ponto de ruptura entre o segurado e o sistema, passa a ser interpretado como uma continuação válida do vínculo previdenciário — um entendimento que pode mudar, literalmente, o destino de milhares de trabalhadores brasileiros.
Imagine a cena. Um contribuinte, como tantos outros, alterna períodos de formalidade e informalidade, enfrenta crises financeiras, paga o que pode para manter-se vinculado ao sistema, mesmo que não atinja o valor mínimo exigido. Antes, esse esforço era ignorado. Contribuição abaixo do mínimo? Qualidade de segurado perdida. Benefícios negados. Direito enterrado. Mas a jurisprudência amadurece, o Direito se humaniza, e, agora, essa realidade está prestes a ser ressignificada pela mais alta corte do país.
Em outubro de 2024, a TNU firmou uma tese que confronta diretamente os efeitos do §14 do art. 195 da Constituição Federal, introduzido pela EC 103/2019, e das disposições do Decreto nº 10.410/2020. A tese é clara: o recolhimento inferior ao mínimo legal não basta, por si só, para descaracterizar a qualidade de segurado. Ou seja, ainda que o contribuinte individual ou facultativo não atinja o valor mensal exigido, isso não implica a ruptura automática de sua proteção previdenciária.
A decisão vai além de uma interpretação literal da Constituição. Ela recupera um princípio basilar do Direito Previdenciário: a proteção do hipossuficiente. A tese não nega os efeitos do §14 da EC 103/2019 no tocante ao cômputo de tempo de contribuição — o que continua exigindo o valor mínimo. Mas resgata, com precisão técnica, que o vínculo subjetivo com o INSS, essencial para a concessão de benefícios imediatos (como auxílio-doença, salário-maternidade e pensão por morte), não pode ser afastado com base apenas no quantum recolhido. A qualidade de segurado se mantém se houver, objetivamente, o ato de contribuição e, subjetivamente, a intenção manifesta de continuar no sistema.
Em contraponto, o Decreto nº 10.410/2020 pretendia estender a exigência do valor mínimo também à manutenção da qualidade de segurado. Mas esse movimento foi além do que lhe permite a função normativa — não cabe ao regulamento restringir direitos onde a Constituição não o faz. É o que chamamos, no controle de legalidade, de extrapolação do poder regulamentar, o que torna a norma, nesse ponto, inconstitucional por vício formal e material.
A decisão da TNU é estratégica, pois recoloca o tema nos trilhos da coerência sistêmica. Se o agrupamento de contribuições inferiores ao mínimo é possível para cômputo de tempo de contribuição — como autorizado pelo próprio §14 da EC 103 —, não seria razoável vedar, de forma automática, a manutenção do vínculo com a Previdência em cada competência isolada. Trata-se de uma questão de proporcionalidade e razoabilidade, pilares que sustentam o Estado de Direito.
Mas a batalha está longe do fim. Em março de 2025, o Supremo Tribunal Federal admitiu o Recurso Extraordinário interposto pelo INSS, que sustenta ofensa direta aos artigos 195, §14, e 201, caput, da Constituição Federal. O julgamento que se avizinha será emblemático. A Suprema Corte terá nas mãos o poder de consolidar — ou revogar — um entendimento que redefine a forma como o sistema previdenciário enxerga seus segurados mais vulneráveis.
O desfecho terá repercussão prática imensa. Se a tese da TNU for mantida pelo STF, uma nova porta se abre para segurados que perderam benefícios por contribuições incompletas. Advogados previdenciaristas poderão revisar milhares de indeferimentos, demonstrando que seus clientes, apesar de terem recolhido abaixo do mínimo, jamais deixaram de estar vinculados ao sistema. Bastará uma análise minuciosa do CNIS, o uso correto da fundamentação com base no Tema 349, e a pronta interposição de recursos administrativos ou judiciais para reverter perdas de benefícios por suposta ausência de qualidade de segurado.
O momento também exige atenção estratégica. Como o STF ainda não decidiu definitivamente, a orientação atual é pela cautela. Ainda que a tese da TNU seja um forte argumento, ela não tem aplicação obrigatória até que ocorra o trânsito em julgado do julgamento no Supremo. Isso significa que os advogados devem recorrer — mas recorrer com consciência. O processo judicial deve demonstrar que a aplicação da norma infralegal (o Decreto) em detrimento da ausência de previsão legal contraria o princípio da legalidade e os direitos fundamentais previdenciários.
Por ora, a tese da TNU deve ser usada como prova da mudança de entendimento na jurisprudência. Trata-se de uma construção que, embora ainda sujeita à confirmação, já possui força retórica suficiente para fundamentar ações, cautelares e mandados de segurança que objetivem resguardar direitos ameaçados ou indevidamente negados.
Mais do que uma tese técnica, o Tema 349 é um ponto de inflexão paradigmático. Ele resgata o sentido de pertencimento ao sistema previdenciário, mesmo diante de contribuições escassas, intermitentes ou incompletas. Ele retoma o protagonismo do segurado em sua relação com o INSS, reconhecendo que o esforço de contribuir — mesmo que abaixo do mínimo — é, por si só, uma manifestação de vontade jurídica relevante. E, em um sistema voltado à proteção social, isso deve importar.
