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O Fim da Estabilidade? STF Libera Contratações Pela CLT no Serviço Público

A decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou válida a Emenda Constitucional nº 19/1998 marca um dos mais significativos marcos de inflexão no modelo de contratação de servidores públicos no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988. A medida rompe com a obrigatoriedade do regime jurídico único – até então consagrado como paradigma de estabilidade e homogeneidade nas relações entre Estado e servidores – ao autorizar de forma expressa a adoção do regime celetista no serviço público direto, autárquico e fundacional. Essa mudança não se resume a um ajuste técnico ou procedimental: ela reconfigura, em seu âmago, o pacto administrativo, gerando implicações constitucionais, políticas, econômicas e sociais de altíssimo impacto.


Sob o argumento de conferir maior eficiência e racionalidade à administração pública, a tese vencedora no julgamento da ADI 2135 sustenta que o pluralismo jurídico no vínculo empregatício, ao invés de comprometer, potencializa a gestão estatal, permitindo adequações específicas às funções desempenhadas por cada tipo de servidor. A possibilidade de se valer do regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – geralmente marcado pela maior flexibilidade nas contratações e desligamentos, menor rigidez nos critérios de progressão e menor custo com encargos – aparece como um trunfo para a contenção de gastos e a desburocratização do Estado.


No entanto, o avanço dessa nova lógica gerencialista não se dá sem colisões com os pilares clássicos do Direito Administrativo. A estabilidade, tida como instrumento de proteção ao servidor contra pressões políticas e ingerências indevidas, pode gradativamente ceder espaço à rotatividade. A impessoalidade, princípio estruturante da administração pública, também se vê desafiada quando diferentes regimes de contratação são utilizados para funções idênticas, fomentando desigualdades internas e um possível enfraquecimento da coesão funcional entre os quadros do Estado.


Do ponto de vista normativo, a revalidação da EC 19/98 reabre a via para os entes federativos optarem, conforme suas conveniências políticas e orçamentárias, entre o regime estatutário e o celetista. Isso poderá gerar um mosaico jurídico e administrativo heterogêneo entre os municípios, estados e a União, afetando não apenas a previsibilidade das relações de trabalho no setor público, mas também a sua atratividade como carreira. Se antes o serviço público era sinônimo de estabilidade, previsibilidade e carreira longa, agora tende a ser comparado com o setor privado em termos de segurança jurídica, ainda que sem o mesmo grau de flexibilidade contratual.

No plano previdenciário, abre-se mais uma fenda. O regime próprio dos servidores públicos (RPPS), baseado no estatutário, poderá perder sua força com a migração para o regime geral (RGPS), próprio dos trabalhadores celetistas. Essa mudança, que já vinha sendo observada com a adesão de novos entes a regimes de previdência complementar, pode acelerar-se, afetando o equilíbrio atuarial de fundos públicos e gerando impactos bilionários a longo prazo.


Por outro lado, o julgamento não impõe a adoção do regime celetista: ele apenas a permite. Em outras palavras, cada ente federativo continuará a ter autonomia para decidir seu modelo, mas agora sem a espada de inconstitucionalidade que por anos pairava sobre a EC 19/98. É um retorno ao que, entre 1998 e 2007, já estava sendo aplicado por diversos municípios e estados. E muitos deles, agora, poderão retomar contratações celetistas – especialmente em tempos de crise fiscal ou de reformas administrativas locais.


Sob o enfoque político, a decisão do STF tem um peso simbólico importante. Ela sinaliza uma adesão, mesmo que indireta, ao modelo de gestão por desempenho e flexibilidade, típico das doutrinas de nova governança pública. Ela também reforça a tendência de erosão das garantias clássicas do serviço público em prol da eficiência e do controle orçamentário, tendência essa já vista na reforma da previdência, na PEC do teto de gastos e na proposta de reforma administrativa.


É inegável, porém, que a constitucionalidade da EC 19/1998 resolve uma pendência jurídica que pairava há mais de duas décadas. Desde a liminar concedida pelo ministro Ayres Britto em 2007, os entes públicos conviviam com um limbo normativo. Agora, com a decisão final do Plenário, abre-se uma nova fase, que exigirá atenção redobrada dos gestores públicos, dos sindicatos, do Ministério Público e dos próprios Tribunais de Contas.


Por fim, deve-se considerar que o novo panorama jurídico-administrativo exige uma regulamentação prudente e clara. A coexistência de regimes distintos não pode ser interpretada como carta branca para contratações precárias, uso político de vínculos temporários ou diferenciações salariais arbitrárias. O próprio princípio da igualdade exige, em sua acepção substancial, que trabalhadores que exercem funções equivalentes não sejam tratados de forma desigual sem que haja uma razão técnica, jurídica ou econômica razoável.


Portanto, o desafio que se impõe não é apenas jurídico, mas de gestão pública. A racionalidade que se busca com a flexibilização do regime de contratação deve ser acompanhada de controles robustos, mecanismos de transparência, planejamento estratégico de pessoal e preservação dos direitos fundamentais dos servidores públicos.





Esta é a foto do Editor do Blog Raphael Luque

Raphael Luque

Advogado, Professor, desde 2004.

Editor

Esta é a foto do Editor do Blog Camila Adam Luque

Camila Adam Luque

Advogada, desde 2019.

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