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Doutrina Especializada: A Coisa Julgada perante o STF - Tema 881 e 885 - Mudanças profundas. Entenda.

A coisa julgada – a decisão judicial final da qual não cabem mais recursos – é protegida pela Constituição Federal (art. 5º, XXXVI) como garantia de segurança jurídica. Por outro lado, a supremacia da Constituição e a uniformidade na sua interpretação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) impõem que decisões judiciais não perpetuem situações contrárias à Constituição. Surge daí o conceito de “coisa julgada inconstitucional”: situações em que um julgado transitado em julgado conflita com entendimento constitucional firme do STF, levantando a questão de se é possível “desconstituir” (anular) essa coisa julgada em prol da Constituição.


Historicamente, prevalecia a máxima de intangibilidade da coisa julgada, salvo hipóteses especiais de ação rescisória. A Súmula 343 do STF, por exemplo, impedia rescisórias por “ofensa à lei” quando a decisão rescindenda se baseou em interpretação jurídica então controvertida nos tribunais. Contudo, o próprio STF passou a relativizar essa súmula em casos de flagrante inconstitucionalidade: entendimentos posteriores do STF indicando que a decisão transitada violava a Constituição passaram a abrir exceção para rescindir o julgado. Em suma, formou-se a ideia de que a autoridade da coisa julgada cede diante da autoridade da Constituição.


Decisões Recentes do STF: Temas 881 e 885 (Repercussão Geral)

Em 2023, o STF revisitou de forma profunda esse tema ao julgar dois recursos paradigmáticos, fixados como Tema 881 e Tema 885 de Repercussão Geral. Essas decisões inauguraram uma nova abordagem quanto à coisa julgada inconstitucional, especialmente no campo tributário, mas com reflexos gerais:

  • Tema 881 (RE 949.297/CE) – caso em que o contribuinte possuía uma decisão transitada em julgado reconhecendo a inconstitucionalidade de determinado tributo (a contribuição social sobre o lucro líquido – CSLL), exonerando-o do pagamento. Anos depois, o próprio STF, em controle concentrado (Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 15/DF, julgada em 2007), declarou constitucional a exigência daquele tributo, criando contradição entre a coisa julgada individual e a nova orientação constitucional.

  • Tema 885 (RE 955.227/BA) – caso análogo envolvendo também a CSLL, mas focalizado no efeito de decisões do STF em controle difuso (recursos extraordinários) sobre coisas julgadas anteriores. Discutiu-se tanto situações de decisões do STF antes da repercussão geral (ex.: REs 138.284 e 146.733 de 1992, que já haviam reconhecido a constitucionalidade da CSLL antes de 2004) quanto decisões sob a sistemática da Repercussão Geral (mecanismo introduzido pela EC 45/2004 para uniformizar a jurisprudência constitucional).


Resultado – Tese fixada pelo STF: Ao concluir o julgamento conjunto dos Temas 881 e 885, o Plenário do STF firmou uma tese jurídica de grande impacto, afirmando em essência que determinadas decisões supervenientes do próprio STF “quebram” os efeitos de coisas julgadas anteriores, de forma automática e prospectiva. A tese – proposta no voto do Min. Luís Roberto Barroso – ficou assim resumida:

“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”

Em outras palavras, o STF diferenciou duas situações: (1) se a decisão paradigmática do STF sobre a questão constitucional for anterior a 2004 (isto é, antes do mecanismo da repercussão geral) e tomada em controle difuso incidental, ela não possui efeito automático sobre coisas julgadas já formadas; (2) mas se a decisão do STF decorreu de controle concentrado (como uma ADI) ou de julgamento com repercussão geral reconhecida, então cessam automaticamente os efeitos da coisa julgada incompatível com aquele entendimento.


Essa orientação representa uma mudança significativa, equiparando os efeitos de decisões em repercussão geral aos das decisões de controle abstrato (ADI/ADC/ADPF) O STF entendeu que, após a Reforma do Judiciário (EC 45/2004) e as alterações do CPC de 2015, suas decisões em recursos com repercussão geral adquiriram força vinculante e efeito erga omnes prático, tal como as decisões em controle concentrado. Trata-se de privilegiar a função uniformizadora (“nomofilácica”) do STF, evitando que ilhas de decisões definitivas contrárias ao entendimento constitucional prevalecente continuem produzindo efeitos indefinidamente.


Fundamentos invocados: Nos julgados, os ministros sopesaram princípios constitucionais importantes. De um lado, o princípio da segurança jurídica e a proteção à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI); de outro, os princípios da isonomia (igualdade) e da supremacia da Constituição. Prevaleceu o entendimento de que não seria aceitável manter indefinidamente uma decisão transitada em julgado cujos fundamentos contrariem a Constituição tal como interpretada pelo STF, sob pena de violar a isonomia e privilegiar indevidamente uma das partes. Como bem sintetizou um comentarista sobre o resultado, “no sopesamento entre o respeito à coisa julgada e o princípio da isonomia, prevaleceu a defesa da tese de que não seria válida a manutenção de uma decisão judicial que, mesmo transitada em julgado, liberasse um contribuinte do pagamento de um tributo quando seus fundamentos estivessem em desconformidade com a jurisprudência posteriormente consolidada nos tribunais superiores”conjur.com.br. Em outras palavras, a igualdade e a autoridade das decisões do STF sobrepujam a res judicata individual incompatível com elas.


Efeitos temporais (prospectivos x retroativos): Importante destacar que a “quebra” da coisa julgada decidida pelo STF opera eficácia ex nunc, ou seja, para o futuro. A própria tese fixada ressalva expressamente a irretroatividade e as regras de anterioridade tributária. Isso significa que a decisão transitada em julgado permanece válida quanto a fatos ocorridos antes do novo precedente do STF, sendo afetada apenas em sua eficácia futura. No âmbito tributário de obrigações de trato sucessivo, por exemplo, os tributos que o contribuinte não pagou amparado pela coisa julgada continuam não devidos até a data do novo precedente vinculante do STF; porém, a partir desse marco temporal, cessa a desoneração e o tributo volta a ser exigível. Como explicaram os votos, os fatos geradores anteriores ao novo precedente não podem ser cobrados (nem geram repetição de indébito), preservando-se a higidez da coisa julgada até aquele momento; o que se interrompe são os efeitos futuros da decisão, em face do entendimento superveniente do STF.


Essa orientação ficou evidente nos próprios casos concretos julgados em 2023. No Tema 881, por exemplo, as empresas que estavam há anos dispensadas de recolher a CSLL por força de decisões transitadas em julgado voltaram a se sujeitar à cobrança imediatamente após o STF consolidar o entendimento contrário. A maioria dos ministros entendeu inclusive que essa restauração da incidência tributária alcançaria períodos a partir de 2007 – ano em que o STF (em composição anterior) declarara a constitucionalidade da CSLL na ADI 15/DF – não se limitando apenas aos fatos geradores futuros à decisão de 2023. Em outros termos, a coisa julgada foi considerada inoperante desde o momento em que sobreveio o julgamento de constitucionalidade pelo STF, ainda que esse julgamento seja anterior em muitos anos ao próprio julgamento dos Temas 881/885. Ressalte-se, porém, que esse entendimento sobre retroação temporal foi controvertido e gerou debate sobre modulação de efeitos: ministros como Edson Fachin, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Nunes Marques defendiam que a decisão do STF deveria modular seus efeitos (provavelmente para aplicar apenas ex nunc ou a partir de 2023), mas restaram vencidos A maioria optou por não modular, aplicando a nova tese de imediato aos casos em julgamento e alcançando o período desde 2007

Observação – aplicação simétrica (“para os dois lados”): Embora os casos paradigmas tratassem de coisa julgada favorável ao contribuinte (impedindo a cobrança de tributo depois considerado constitucional), a tese firmada pelo STF é bilateral. Ou seja, vale também para a situação inversa – em que um contribuinte tenha sido derrotado e pago um tributo, mas posteriormente o STF venha a declarar a inconstitucionalidade dessa exação. Nesse cenário, a decisão final contrária ao contribuinte igualmente perde eficácia, e abre-se caminho para desconstituí-la e reparar a cobrança indevida. O próprio STF mencionou, como exemplo, a hipótese de contribuição previdenciária sobre salário-maternidade: ainda que um contribuinte tenha coisa julgada reconhecendo a exigibilidade (pagou o tributo), a superveniência de precedente do STF declarando a inconstitucionalidade da cobrança autoriza a relativização dessa coisa julgada para liberar o contribuinte e eventualmente restituir valores pagos indevidamente. Em suma, o critério da Corte se aplica a favor da Fazenda ou a favor do contribuinte, conforme o caso, garantindo isonomia de tratamento.

Fundamentos Constitucionais e Processuais das Decisões

As decisões recentes apoiam-se em dispositivos constitucionais e legais que buscam conciliar a autoridade da coisa julgada com a autoridade das decisões do STF em matéria constitucional:


  • Cláusula da Coisa Julgada (CF, art. 5º, XXXVI): Foi reconhecido que a proteção à coisa julgada não é absoluta a ponto de chancelar situações inconstitucionais perpétuas. O STF entendeu que o art. 5º, XXXVI – que veda a lei de violar a coisa julgada – não impede o próprio Poder Judiciário de readequar a coisa julgada à Constituição, sobretudo diante de uma decisão posterior do órgão de cúpula do Judiciário sobre a validade da norma aplicada. Há uma leitura sistêmica de que a garantia da coisa julgada convive com outros princípios, como a supremacia constitucional e a isonomia, e deve ceder diante de um conflito inconciliável com estes.


  • Papel do STF e Repercussão Geral (CF, art. 102, §3º): A Emenda Constitucional 45/2004 inseriu o §3º no art. 102 da CF, criando o filtro da repercussão geral nos recursos extraordinários. Esse mecanismo – regulamentado inicialmente pela Lei 11.418/2006 e incorporado no CPC/2015 – atribuiu ao STF a missão de uniformizar a interpretação constitucional em casos de grande impacto. Os ministros destacaram que a partir de então as decisões do STF com repercussão geral ganharam força normativa para vincular os demais órgãos (vide CPC, art. 927, inc. III e §4º). Assim, permitir que decisões individuais antigas contrariem deliberadamente o entendimento do STF afrontaria a própria autoridade da Corte Constitucional. Como frisou o Min. Barroso em seu voto, o novo CPC/2015 instituiu a força obrigatória dos precedentes do STF, consolidando um “paradigma vinculante” que justifica a relativização de julgados em sentido oposto.


  • Princípio da Isonomia (CF, art. 5º, caput): Teve peso central na nova orientação. Manter uma coisa julgada inconstitucional pode gerar tratamentos desiguais: por exemplo, um contribuinte beneficiado por decisão contra a lei não paga tributo enquanto seus concorrentes pagam regularmente, ou vice-versa. O STF entendeu que a igualdade de todos perante a lei e perante as decisões vinculantes do STF deve prevalecer, evitando privilégios fundados em julgados contrários ao direito objetivo vigente. A jurisprudência posterior do STF não pode valer apenas para alguns, sob pena de erosão da igualdade e da credibilidade do sistema jurídico.


  • Segurança Jurídica e Proteção da Confiança: Apesar da guinada, o Tribunal buscou mitigar a insegurança gerada pela quebra da coisa julgada impondo limites temporais e procedimentais (como a irretroatividade e as condicionantes para ação rescisória, que veremos adiante). A preocupação com a segurança jurídica ficou patente na discussão sobre modulação de efeitos. Embora a maioria não tenha modulado no caso específico (Temas 881/885), o tema retornou em 2025 (AR 2.876) exatamente para estabelecer parâmetros gerais a fim de equilibrar a necessidade de corrigir a inconstitucionalidade com a estabilidade das relações já consolidadas. Em situações de potencial risco social ou grande abalo à ordem jurídica, o próprio STF admite a possibilidade de não admitir a rescisão de julgados ou de modular a decisão para frente, caso a caso. Esse é um reconhecimento de que a segurança jurídica também é um valor constitucional a ser preservado quando a correção da inconstitucionalidade puder causar dano maior que sua manutenção temporária.


  • Previsão no Código de Processo Civil (CPC/2015): O legislador de 2015 incorporou expressamente mecanismos para lidar com a coisa julgada inconstitucional, refletindo entendimentos jurisprudenciais já em formação no STF. Em especial, destacam-se dois dispositivos: o art. 525, §15, e o art. 535, §8º, do CPC. Em síntese, essas normas dispõem que, se uma decisão transitada em julgado se baseou em lei ou ato normativo posteriormente declarado inconstitucional pelo STF, ou em interpretação por ele considerada incompatível com a Constituição, é cabível ação rescisória para desconstituir essa decisão, contando-se o prazo decadencial de dois anos a partir do trânsito em julgado da decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade. Em paralelo, enquanto não proposta (ou quando incabível) a rescisória, o devedor pode alegar a inexigibilidade do título executivo fundado em lei inconstitucional, no próprio cumprimento de sentença (CPC, art. 525, §12 e seguintes; art. 535, §§5º e seguintes). Essas inovações legais romperam com a rigidez tradicional da coisa julgada, ao prever expressamente hipóteses de relativização fundamentadas na supremacia constitucional.


Vale notar que, à época da promulgação do CPC/2015, discutiu-se a constitucionalidade dessas previsões – alguns juristas as viam com reserva, temendo violação da coisa julgada e da segurança jurídica. Contudo, o STF agora, em suas decisões mais recentes, confirmou a validade desses dispositivos, interpretando-os conforme a Constituição e inclusive podando eventuais excessos. Isso mostra uma convergência entre a legislação processual e a orientação jurisprudencial do Supremo no sentido de admitir a rescisão de coisa julgada inconstitucional, desde que dentro de balizas temporais e materiais bem definidas.



Prazos e Requisitos para Desconstituição (Ação Rescisória)

A ação rescisória é o instrumento processual típico para anular uma decisão transitada em julgado, nas hipóteses taxativas da lei (CPC, art. 966). No regime comum, a rescisória deve ser ajuizada em até 2 anos após o trânsito em julgado da decisão alvo (prazo decadencial). No contexto da coisa julgada inconstitucional, contudo, as regras especiais do CPC/2015 (art. 525, §15 e art. 535, §8º) e a recente interpretação do STF ajustaram esse prazo e adicionaram restrições visando equilibrar correção e segurança:


  • Novo termo inicial do prazo: Confirmando o que dispõe o CPC, o STF assentou que o prazo de 2 anos para a rescisória conta do trânsito em julgado da decisão do STF que firmou o entendimento de inconstitucionalidade (ou constitucionalidade) contrariando a decisão rescindenda. Ou seja, o prazo não é calculado a partir da decisão original transitada, mas sim a partir do precedente do STF que tornou patente a incompatibilidade daquela decisão com a Constituição. Por exemplo, se o STF declarou uma lei inconstitucional em 2025, abrindo espaço para rescindir sentenças passadas que aplicaram essa lei, os prejudicados têm até 2 anos a partir do trânsito em julgado da decisão de 2025 para propor rescisória. Essa interpretação foi fixada em abril de 2025, quando o STF julgou questão de ordem na AR 2.876/DF (rel. Min. Gilmar Mendes) justamente para definir a constitucionalidade e o âmbito desses prazos.


  • Limite à retroatividade dos efeitos financeiros: Ainda na decisão da AR 2.876 (2025), o STF acrescentou um importante freio temporal. Ficou estabelecido que, salvo disposição expressa em contrário, uma vez desconstituída a coisa julgada, os efeitos retroativos da decisão rescindenda ficam limitados a 5 anos da data do ajuizamento da ação rescisória. Em outras palavras, a rescisão da decisão não permitirá recuperar valores ou reverter situações para além do quinquênio anterior à propositura da rescisória. Esse ponto visa proteger a confiança legítima e evitar impactos financeiros muito antigos. Por exemplo, se a Fazenda Nacional rescinde em 2025 uma sentença que dispensava um contribuinte de tributo desde 2010, ela só poderá cobrar retroativamente até 2020, e não todo o período de 2010-2025, por força dessa limitação quinquenal. Do mesmo modo, se for o contribuinte quem ajuíza rescisória para reaver tributos pagos sob uma decisão agora reconhecida como inconstitucional, ele só teria direito aos últimos 5 anos de pagamentos pretéritos.


  • Caso a caso – possibilidade de modulação ou vedação da rescisória: O STF deixou claro que pode definir, em cada caso de decisão constitucional relevante, o alcance temporal de seus efeitos e a possibilidade (ou não) de ação rescisória. Poderá, por exemplo, decidir expressamente que em determinada decisão (sobretudo em controle concentrado ou repercussão geral) não caberá ação rescisória para desconstituir coisa julgada preexistente, se entender que isso causaria grave lesão à segurança jurídica ou ao interesse social. Assim, a regra dos “2 anos + 5 anos” mencionada acima é a regra geral, aplicável na ausência de manifestação expressa em sentido diverso. Esse reconhecimento de flexibilidade permite ao STF, por exemplo, modular efeitos de uma decisão constitucional de grande impacto para proteger situações consolidadas – inclusive podendo proibir a rescisão em certos casos excepcionais. Trata-se de um “escape” prudencial que evita a aplicação mecânica da relativização da coisa julgada quando os custos sociais de desfazer decisões seriam altos demais.


  • Inexigibilidade do título executivo judicial: Além da via da rescisória, existe uma salvaguarda processual importante para a parte que foi derrotada no passado com base em uma norma depois julgada inconstitucional. O STF confirmou que é possível alegar, a qualquer tempo, a inexigibilidade de uma sentença transitada em julgado fundada em norma ou interpretação considerada inconstitucional, mesmo que o reconhecimento da inconstitucionalidade seja posterior ao trânsito em julgado da decisão. Essa alegação se dá nos próprios autos de cumprimento de sentença ou execução – por exemplo, via impugnação ao cumprimento de sentença (no caso de particulares) ou embargos à execução contra a Fazenda Pública – com base no art. 525, §12 e art. 535, §5º do CPC. Assim, se alguém tenta executar um título judicial (como cobrar valores) cujo fundamento legal o STF derrubou por inconstitucionalidade, o devedor pode arguir que o título se tornou inexigível. Conforme a tese aprovada, tal arguição independe de o precedente do STF ser anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda. Não há prazo decadencial fixo para invocar essa defesa, mas a parte deve fazê-lo assim que possível, sob pena de preclusão. Na prática, isso complementa a ação rescisória: mesmo ultrapassado o prazo da rescisória, ninguém será forçado a cumprir uma obrigação judicial que contrarie frontalmente a Constituição segundo o STF – bastando invocar a inexigibilidade do título.


Incidentalmente, ao julgar a QO na AR 2.876, o STF declarou inconstitucionais alguns trechos do CPC/2015 que poderiam sugerir efeitos mais amplos. Por exemplo, o §14 do art. 525 e o §7º do art. 535 foram invalidados. Estes dispositivos tratavam do recomeço do prazo da rescisória e da (in)aplicação da rescisória após decisões do STF. A Corte os interpretou conforme a Constituição, com efeitos ex nunc, ou seja, de maneira a não retroagir de forma irrestrita e a preservar as situações já consumadas quando cabível. Com isso, alinhou-se definitivamente o texto legal à orientação jurisprudencial: pode-se rescindir coisa julgada inconstitucional, mas dentro dos limites de prazo (dois anos do precedente) e com efeitos controlados (até cinco anos retroativos, salvo decisão em contrário).


Impactos Práticos e Considerações Finais

A nova abordagem do STF acerca da coisa julgada inconstitucional traz repercussões importantes para diversos atores do mundo jurídico:


  • Para a Advocacia Pública (Procuradores e Fazendas Públicas): As Procuradorias fazendárias e demais órgãos públicos agora dispõem de fundamentos claros para não mais se sujeitar passivamente a coisas julgadas contrárias à Constituição. Na prática fiscal, isso significa que a Fazenda Pública pode voltar a cobrar tributos ou outras obrigações que antes estavam cobertos por sentença transitada em julgado favorável ao contribuinte, desde que haja o respaldo de um precedente vinculante do STF em sentido contrário. Os procuradores deverão identificar casos em que decisões definitivas geraram situações anti-isonômicas ou contrárias a entendimentos consolidados do STF e avaliar medidas cabíveis. Em muitos casos, será necessário propor ações rescisórias dentro do biênio a partir do precedente do STF para desconstituir formalmente aquelas decisões. Além disso, no curso de execuções judiciais, os advogados públicos poderão alegar inexigibilidade do título, evitando pagamentos indevidos com base em leis já declaradas inconstitucionais (por exemplo, em requisições de pequeno valor ou precatórios cuja base legal caiu). É fundamental, por outro lado, que a Fazenda observe também os limites impostos pelo STF: respeitar a limitação de cobrança retroativa a 5 anos (salvo decisão específica em contrário) e ter cautela em casos de potencial comoção social, onde talvez o próprio STF venha a modular efeitos ou vedar rescisórias. Em suma, a orientação do STF fortalece a posição fiscal diante de “coisas julgadas iníquas”, mas exige atuação diligente dentro dos prazos e balizas fixados.


  • Para Advogados Privados e Partes (Contribuintes, jurisdicionados em geral): Os advogados de partes beneficiadas por decisões transitadas em julgado precisam estar cientes de que esses “direitos adquiridos” pela coisa julgada podem não ser perenes se conflitam com a Constituição. Será necessário alertar os clientes de que uma vitória judicial definitiva em matéria constitucional (especialmente tributária) pode ser revista ou perder eficácia caso o STF posteriormente decida a questão de forma diversa em sede de repercussão geral ou controle concentrado. Assim, por exemplo, empresas que deixaram de pagar certo tributo por força de decisão final favorável devem acompanhar de perto a evolução da jurisprudência do STF sobre aquele tributo – uma decisão posterior do Supremo pode significar a volta da obrigação fiscal dali em diante. Do lado daqueles que inicialmente foram derrotados em juízo, a nova abordagem abre oportunidades: o advogado privado poderá recomendar a seus clientes a propositura de ação rescisória para reverter uma coisa julgada desfavorável que se apoie em norma declarada inconstitucional ou em entendimento superado do STF. Nesses casos, o cliente poderá recuperar valores pagos indevidamente nos últimos cinco anos e cessar pagamentos futuros, observando o prazo de dois anos após o precedente do STF. Igualmente, no caso de cobranças judiciais em curso fundadas em título potencialmente inconstitucional, o advogado deve usar a ferramenta da impugnação ao cumprimento de sentença por inexigibilidade (CPC, art. 525) para proteger seu cliente. Em resumo, a advocacia privada ganha mais um meio de pleitear direitos constitucionais supervenientes, mas também assume o ônus de monitorar ativamente a jurisprudência e calcular riscos de eventual “revogação” de coisas julgadas.


  • Para a Magistratura: Os juízes e tribunais deverão adequar suas decisões e práticas a essa orientação vinculante do STF. Isso se dá em várias frentes. Primeiro, no julgamento de casos repetitivos ou com repercussão geral reconhecida, os tribunais já vinham observando a necessidade de seguir a orientação do STF (CPC, art. 927); agora, além disso, devem considerar que uma decisão sua poderá afetar coisas julgadas preexistentes e, portanto, avaliar eventualmente modulações de efeitos ou comunicar claramente o alcance temporal de suas decisões. Segundo, nos processos de execução/cumprimento de sentença, os magistrados precisam admitir e apreciar as alegações de inexigibilidade de título baseadas em decisão do STF (mesmo que superveniente). A tendência é que diminua a resistência em reconhecer essas alegações como matéria de ordem pública: o próprio STF chancelou que nenhuma decisão judicial pode subsistir para exigir um cumprimento manifestamente incompatível com a Constituição. Terceiro, na análise de ações rescisórias, os juízes (sobretudo dos Tribunais, competentes para julgar rescisórias) terão de aplicar o novo marco temporal: admitir rescisórias propostas dentro de dois anos do precedente do STF, ainda que muito depois do trânsito em julgado original, e limitar os efeitos retroativos da rescisão ao quinquênio fixado (salvo se o STF tiver disposto de forma diversa no caso matriz). Isso provavelmente exigirá atualização de entendimentos e súmulas locais – por exemplo, Súmulas baseadas na antiga orientação (como a mencionada Súmula 343 do STF) não devem ser óbice quando se tratar de coisa julgada inconstitucional em matéria constitucionalconjur.com.br. Em síntese, caberá à magistratura dar efetividade prática a essa nova orientação: negar tutela a quem invoque coisa julgada contrária ao posicionamento vinculante do STF e, paralelamente, assegurar celeridade na correção de decisões pretéritas via rescisória ou mecanismos equivalentes, garantindo que o sistema jurídico caminhe de forma coesa sob a égide da Constituição.


Em conclusão, a evolução jurisprudencial recente reafirma um princípio fundamental do Estado de Direito brasileiro: a Constituição prevalece sobre as decisões judiciais individuais, ainda que acobertadas pelo manto da coisa julgada, quando estas decisões violarem frontalmente a Lei Fundamental segundo o entendimento consolidado do STF.


A abordagem atual do Supremo busca harmonizar o respeito à coisa julgada com a necessidade de não se perpetrarem situações inconstitucionais ou assimétricas. A coisa julgada continua sendo pilar da segurança jurídica, mas já não é um escudo absoluto contra a atuação corretiva da jurisdição constitucional. Os operadores do Direito devem, portanto, ajustar suas estratégias a esse paradigma: decisões finais contrárias à Constituição podem ser revistas, desde que observados os requisitos processuais (ação rescisória tempestiva, etc.) e os limites materiais (efeitos ex nunc ou com retroação mitigada) fixados pelo Supremo.


Como resultado, o ordenamento jurídico ganha coerência e isonomia, sem perder de vista a proteção à confiança legítima. Nas palavras do próprio STF, reconheceu-se “a possibilidade de desconstituir decisões judiciais transitadas em julgado, quando estas se basearem em normas ou interpretações posteriormente declaradas inconstitucionais" – afirmação que sintetiza a superioridade da Constituição e do guardião desta (STF) frente aos casos particulares, tempus regit actum e a justiça material prevalecendo sobre a coisa julgada injusta.


Referências Bibliográficas e Jurisprudenciais:

  • Supremo Tribunal Federal – RE 949.297/CE (Tema 881 da Repercussão Geral) e RE 955.227/BA (Tema 885), julgamento conjunto em 08/02/2023, Tese fixada sobre coisa julgada tributária e decisões supervenientes do STF.

  • STF – Questão de Ordem na AR 2.876/DF, julgamento em 23/04/2025, Rel. Min. Gilmar Mendes, fixando diretrizes sobre prazos e limites da ação rescisória em caso de coisa julgada inconstitucional.

  • Constituição Federal (1988): art. 5º, caput e inc. II (igualdade e legalidade), art. 5º, XXXVI (coisa julgada), art. 102, §3º (Repercussão Geral em RE), art. 103-A (súmula vinculante); art. 150, III (limitações ao poder de tributar, incluindo anterioridades); art. 37 (princípios da Administração, especialmente legalidade e impessoalidade relacionados à isonomia fiscal).

  • Código de Processo Civil (2015): art. 525, §§12-15; art. 535, §§5º-8º; art. 966, inc. V e §§ 4º e 5º (ação rescisória por violação manifesta de norma jurídica e termo inicial nos casos de decisão do STF); art. 927, inc. III e §3º (observância de precedentes do STF e modulação em mudança de jurisprudência).

  • Jurisprudência relacionada: STF, Súmula 343 (interpretação restritiva da rescisória em caso de jurisprudência controvertida); STF, RE 590.809/SC (RG Tema 136) – reafirmou inaplicabilidade de rescisória quando decisão originária estava alinhada à jurisprudência do STF à época; STF, Rcl 4.335/AC (2014) – discutiu eficácia de julgados difusos sem ato do Senado (art. 52, X, CF); STJ, Informativo 727 (2013) – casos de “coisa julgada inconstitucional” e execução (art. 741 do CPC/1973, correspondente ao art. 525 atual).

  • Doutrina: comentário de Régis Pallotta Trigo sobre a relativização da coisa julgada nos Temas 881/885 (Consultor Jurídico)conjur.com.br; análise de Rafael Pandolfo sobre modulação nos Temas 881/885 (ConJur, 27/3/2023)conjur.com.br; artigo “Súmula 343 do STF e o futuro da rescisória em matéria tributária” (ConJur, 21/5/2023) – discute a cadeia evolutiva das decisões do STF sobre coisa julgada e mutação de jurisprudência.


Incorporando essas referências e entendimentos, fica claro que a posição atual do STF viabiliza, em bases excepcionais porém concretas, a desconstituição da coisa julgada inconstitucional – uma medida drástica, porém legitimada pela necessidade de preservar a ordem constitucional e a igualdade, pilares do Estado Democrático de Direito.


Fontes:




Esta é a foto do Editor do Blog Raphael Luque

Raphael Luque

Advogado, Professor, desde 2004.

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Camila Adam Luque

Advogada, desde 2019.

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