O debate em torno da penhorabilidade do bem de família, especialmente no contexto de sua utilização como garantia hipotecária, tem se tornado um ponto crucial nas discussões judiciais, tanto pelo impacto jurídico quanto pela repercussão social que envolve a proteção da entidade familiar. A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no AgInt no AREsp n. 2.703.309/PR, de 16/12/2024, relatada pelo Ministro Marco Buzzi, reafirma a importância da interpretação restritiva das hipóteses de exceção à impenhorabilidade previstas na Lei n. 8.009/1990, consolidando, mais uma vez, a proteção jurídica ao núcleo familiar.
O cerne da controvérsia gira em torno do artigo 3º, inciso V, da Lei n. 8.009/1990, que admite a penhora do bem de família quando a garantia hipotecária for constituída em benefício da própria entidade familiar. O STJ, contudo, sublinha que essa exceção não pode ser ampliada para abranger situações em que o imóvel é oferecido como garantia de dívida contraída por terceiros ou por pessoas jurídicas, mesmo que estas tenham vínculo com os integrantes do núcleo familiar. A decisão é categórica ao vedar a presunção de que a garantia foi dada em benefício da família, reforçando que cabe ao credor demonstrar, de maneira inequívoca, que a dívida contraída reverteu-se diretamente em favor do grupo familiar.
Essa diretriz jurisprudencial não apenas preserva o propósito protetivo da Lei do Bem de Família, mas também impede abusos e distorções que poderiam levar à desproteção das famílias em contextos financeiros vulneráveis. A interpretação restritiva evita que credores utilizem o bem de família como uma "garantia universal", ampliando indevidamente os efeitos da exceção legal e comprometendo a segurança patrimonial que a norma busca assegurar.
A decisão relatada pelo Ministro Marco Buzzi também reforça o papel dos tribunais em garantir a proporcionalidade e a razoabilidade na aplicação das exceções à impenhorabilidade. Permitir que um imóvel familiar seja utilizado como garantia para dívidas de terceiros seria desvirtuar o objetivo primordial da norma, que é assegurar um teto mínimo e inviolável para a entidade familiar. Ao condicionar a penhora à demonstração clara e específica de que a dívida foi contraída em benefício do núcleo familiar, o STJ contribui para a uniformização da jurisprudência e para a estabilidade das relações jurídicas.
Sob o prisma da política legislativa, a Lei n. 8.009/1990 busca equilibrar dois valores fundamentais: de um lado, a proteção à moradia e à dignidade da pessoa humana, e, de outro, a garantia dos interesses legítimos dos credores. No entanto, a decisão em comento enfatiza que a proteção da moradia deve prevalecer, salvo nas hipóteses taxativamente previstas na lei. Essa visão está em consonância com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade, que conferem uma perspectiva de proteção ampla ao bem de família.
Ademais, o precedente gera importantes implicações para o mercado financeiro e as práticas bancárias. Instituições financeiras, ao aceitarem bens de família como garantia hipotecária, deverão redobrar os cuidados na análise das condições contratuais e na comprovação do benefício direto à entidade familiar. O risco de eventual anulação da penhora e a possibilidade de litígios prolongados tornam essencial uma abordagem mais criteriosa e alinhada às orientações jurisprudenciais.
A decisão, portanto, não apenas resguarda o patrimônio familiar, mas também promove um ambiente jurídico mais seguro e previsível, tanto para as famílias quanto para os credores. Ela reafirma que o bem de família não pode ser tratado como uma simples mercadoria no mercado financeiro, mas como um direito fundamental a ser protegido em sua essência.